A exposição de motivos da MP n. 899/2019 foi muito clara ao deliberar sobre a necessidade de regulamentar o instituto da transação tributária: há necessidade de uma maior efetividade arrecadatória, aliado a disponibilizar condições especiais aos contribuintes, sejam aqueles que não possuem capacidade financeira para recolher a alta carga tributária do sistema tributário brasileiro, sejam aqueles que foram autuados em razão da complexidade imposta pela legislação tributária.
Dessa forma, as razões que pautaram a elaboração da MP n. 899/2019 e que posteriormente ganhou status de Lei Ordinária Federal, a partir de sua convolação na Lei n. 13.988/2020, foram: viés arrecadatório, sem esquecer de ofertar condições especiais a todos os contribuintes que de alguma forma sofrem com a legislação tributária e/ou com a falta de capacidade financeira que efetive a arrecadação dos tributos devidos.
A Lei n. 13.988/2020 regulamentou o artigo 171 do Código Tributário Nacional e trouxe as disposições legais para que a transação tributária possa ser utilizada, pelos contribuintes, como forma de renegociação de dívidas tributárias de competência da União Federal.
O artigo 1ª, §4º da Lei n. 13.988/2020 discriminou aquelas dívidas tributárias que poderão ser adimplidas por meio do instituto da transação tributária. São elas: (i) os créditos tributários não judicializados sob a administração da RFB; (ii) os débitos tributários inscritos em dívida ativa da União, cuja inscrição, cobrança e representação incumbam à PGFN; e (iii) no que couber, à dívida ativa das autarquias e das fundações públicas federais, cujas inscrição, cobrança e representação incumbam à Procuradoria-Geral Federal, e aos créditos cuja cobrança seja competência da Procuradoria-Geral da União, nos termos de ato do Advogado-Geral da União e sem prejuízo do disposto na Lei n. 9.469, de 10 de julho de 1997.
Os débitos acima indicados poderão ser inseridos nas seguintes modalidades de transação tributária, regulamentados pelo artigo 2º da Lei n. 13.988/2020: (i) por proposta individual ou por adesão, na cobrança de créditos inscritos na dívida ativa da União, de suas autarquias e fundações públicas, ou na cobrança de créditos que seja competência da Procuradoria-Geral da União; (ii) por adesão, nos demais casos de contencioso judicial ou administrativo tributário; e (iii) por adesão, no contencioso tributário de pequeno valor.
Especificamente em relação a transação tributária individual, o legislador preferiu editar uma norma de eficácia limitada, e delegou à PGFN o ato de regulamentar os requisitos e a forma como essa modalidade deve ser procedimentalizada, conforme se depreende da leitura conjunta dos artigos 10 e 14, inciso V, da Lei n. 13.988/2020.
E é a partir desse momento que o instituto da transação tributária se descolou das premissas conferidas na exposição de motivos da MP 899/2019. Ao editar a Portaria PGFN n. 9.917/2020, a PGFN criou requisitos quantitativos que restringem e tornam sem efeito e aplicabilidade do instituto da transação tributária individual para uma maioria esmagadora dos contribuintes.
A intepretação conjunta dos artigos 32, inciso I e 36 da Portaria PGFN n. 9.917/2020, permite uma única interpretação: uma das possibilidade para apresentação de um plano de recuperação fiscal por meio de transação tributária individual, está restrita aos contribuintes que tenham débitos consolidados e inscritos em dívida ativa acima de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais).
Para demonstrar quão inócua, nesta parte, é a Portaria PGFN n. 9.917/2020 para grande maioria dos contribuintes, em relação a esse critério, no dia 24 de junho de 2019 a Coordenação de Acompanhamento e Controle Gerencial da Dívida Ativa, órgão vinculado a PGFN, publicou uma nota destinada a avaliar o endividamento das entidades empresarias ativas e das pessoas físicas junto à PGFN, no âmbito da cobrança da dívida ativa da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço.
Nessa nota, a PGFN traz alguns dados estatísticos sobre a composição das dívidas tributárias que são gerenciadas pelo órgão. De acordo com o setor responsável “(…) ao contemplar os números da dívida ativa da União, verifica-se que 1.256.078 entidades empresariais ativas possuem algum débito inscrito em dívida ativa da União. O valor total devido é de R$ 1.286.230.744.956,35. Desse universo, 7.109 empresas se enquadram no conceito de grande devedor – com débitos junto à PGFN superiores a R$ 15 milhões. Esse pequeno conjunto titulariza um débito consolidado de R$ 899.776.822.699,18, enquanto os 1.248.969 não grandes devedores devem R$ 386.453.922.257,17 (…)” (g.f).
A conclusão da PGFN sobre os dados acima informados é a seguinte: “considerando apenas as entidades empresariais ativas devedoras, 0,6% são responsáveis por 70% do total de débitos por elas titularizado, evidenciando uma grande concentração da dívida nos chamados “grandes devedores” (pessoas com débitos acima de R$ 15 milhões junto à PGFN)”.
Ao analisar as informações e comparar à Portaria PGFN n. 9.917/2020, em relação aos ditames que regulam a possibilidade de apenas contribuintes com mais de R$ 15.000.000,00 de débitos tributários consolidados e inscritos em dívida ativa poderem se utilizar da transação tributária individual, chega às seguintes conclusões:
a. a Portaria PGFN n. 9.917/2020 prestigia somente 0,6% das empresas que possuem algum débito inscrito em dívida ativa. Esse percentual é assustador, se projetarmos os efeitos econômicos que o coronavírus irá causar em todas as empresas que apuram e recolhem tributos federais e que não estão inseridas nesse seleto grupo;
b.a Portaria PGFN n. 9.917/2020 prestigia apenas os chamados “Grandes Contribuintes”, empresas que normalmente possuem saúde financeira para adimplir suas obrigações tributárias e com apetite financeiro para custear contadores e advogados a fim evitar que autos de infração sejam lavrados;
c. 99,4% dos contribuintes não foram prestigiados com a possibilidade de renegociar suas dívidas tributárias por meio da transação tributária individual. Essa parcela esmagadora de contribuintes, sofrem com um cenário de incertezas e, na maioria das vezes, não possuem capacidade financeira para arrecadar os tributos federais incidentes em suas operações e, ao mesmo tempo, dar continuidade a sua atividade empresarial;
d. Os artigos da Portaria PGFN n. 9.917/2020 discutidos nesse artigo, possuem um caráter exclusivamente arrecadatório, em total descompasso às premissas pautadas na exposição de motivos da legislação que regulamentou a transação tributária. Essa conclusão é extraída do fato de que as benesses da transação individual poderão ser aproveitas apenas por 0,6% das empresas contribuintes em razão do aspecto quantitativo limitador (débitos consolidados acima de R$ 15.000.000,00), tendo em vista que elas são detentoras de 70% da dívida ativa inscrita na União.
As quatro conclusões acima demonstram que a Portaria PGFN n. 9.917/2020 além de não se adequar as premissas fixadas na exposição de motivos e ao texto legal que regulamentou a transação tributária, certamente viola os princípios da isonomia tributária, da legalidade tributária estrita e da capacidade contributiva.
Há necessidade de assegurar que os contribuintes tenham acesso às condições especiais ofertadas pela transação tributária, como forma de mitigar os efeitos financeiros de uma iminente cobrança tributária. Ainda mais no atual cenário caótico e de incertezas políticas e econômicas causadas pelo coronavírus, no qual as empresas em geral perderam a capacidade contributiva.
E esse custo tende a aumentar exponencialmente, em razão da expressiva retração econômica em razão das medidas de combate ao coronavírus e a iminente cobrança de tributos em descompasso com os diversos princípios constitucionais acima aludidos.
Ou seja, não garantir o acesso a condições especiais para negociação de dívida tributária, dificultará a continuidade da atividade empresarial dos contribuintes, estimulando um severo corte de gastos que, certamente, resultará em demissões de trabalhadores e gerará um cenário de escassez e de pouca concorrência em todos os setores da economia.
Não resta nenhuma dúvida de que a PGFN deve aprimorar a Portaria PGFN n. 9.917/2020, para possibilitar um maior leque de opções a uma parcela maior de contribuintes. Caso contrário, a efetividade arrecadatória fracassada em parcelamentos extraordinários, permanecerá inalterada na transação tributária. E uma parcela significativa de contribuintes ficará “a ver navios” em uma crise econômica sem precedentes e sem um fim próximo.
Veremos como se desenrolará essa história…
Por Thales Saldanha Falek, MBA em Gestão Tributária pela FIPECAF. Especialista em Direito Tributário pelo IBET. Sócio do escritório Carrilho Donas Advocacia.