Para especialistas, ao admitir que questões tributárias julgadas em caráter definitivo podem ser revistas e deixar de produzir efeitos, Corte permite cobrança retroativa de impostos, cria insegurança e abre caminho para novas batalhas judiciais
Por Rafaela Gonçalves
Uma decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nesta semana deve ter forte impacto sobre o caixa das empresas, além de aumentar a insegurança jurídica do sistema tributário brasileiro, em um momento delicado da economia. De acordo com especialistas, a decisão atinge grandes grupos como Embraer, Pão de Açúcar (GPA), Vale e instituições financeiras, e deve desencadear contestações no próprio STF.
Em julgamento na última quarta-feira, a Corte entendeu que decisões de caráter definitivo em matéria tributária podem ser quebradas, no caso de eventual mudança de entendimento do tribunal sobre a questão. A decisão foi proferida pelo Supremo ao examinar o caso concreto da Braskem e da Têxtil Bezerra de Menezes (TBM), que, na década de 1990, ganharam o direito de não pagar a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) em decisão transitada em julgado, ou seja, sem mais possibilidade de recurso.
Em 2007, contudo, o STF mudou o entendimento, e passou a considerar a cobrança constitucional. Para a União, ao decidir que sentenças definitivas do passado podem ser revistas e deixar de produzir efeitos, o tribunal permite que a Receita Federal cobre o tributo não recolhido desde aquela época, inclusive com multa e juros, e não apenas daqui por diante.
Até agora, a Receita Federal tinha até dois anos para pedir a reversão nesses casos, e apenas por meio de um instrumento específico de ação rescisória. Com o novo entendimento, a cobrança passa a ser automática, podendo até mesmo ser retroativa.
A questão é polêmica, tanto que o STF se dividiu: seis ministros votaram pela tese vencedora, mas cinco manifestaram posição contrária.
Relator de um dos processos em análise, o ministro Luís Roberto Barroso, argumentou que a isenção obtida por algumas empresas dava a elas um tratamento tributário diferenciado, provocando um desequilíbrio concorrencial, o que a Constituição não permite. De acordo com o magistrado, poderia haver “injustiça tributária” se houvesse modulação favorável àqueles que, mesmo sabendo da posição do Supremo, continuassem sem recolher a contribuição.
O ministro Luiz Fux, por sua vez, considerou que o STF errou. “Nós tivemos uma decisão que destruiu a coisa julgada, que criou a maior surpresa fiscal para os contribuintes, um risco sistêmico absurdo”, disse ele, ontem, em evento em São Paulo.
A CSLL é calculada sobre o lucro e tem alíquota de 9% para pessoas jurídicas em geral, podendo chegar a 21% no caso de instituições financeiras — no período analisado pelo STF, o teto era de 15%.
Advogados afirmam que não é possível estimar o impacto da decisão, já que as empresas que tinham decisões tributárias definitivas não fizeram provisão para eventuais perdas, dado o respaldo pelo trânsito em julgado.
“É incalculável o prejuízo que as empresas podem sofrer com essas decisões, já que a gente não sabe o que nos espera. De repente, o guardião da Constituição muda de ideia e relativiza ações já julgadas. Esses tributos não estavam previstos para as companhias, que poderão ter que pagar em até cinco anos, é muito preocupante”, alertou a advogada especializada em direito tributário Beatriz Finochio.
De acordo com a advogada, a decisão deve ter impactos técnicos e sociais, além de criar um entrave no ambiente de negócios, aumentando a insegurança jurídica. “Dívidas milionárias vão surgir para o empresariado, e o impacto social disso é gigantesco. Claramente, isso afeta significativamente muitas empresas que podem não ter fôlego para se sustentar, muitas poderão falir e gerar desemprego. Além disso, criou-se um ambiente de insegurança jurídica para novos investimentos. Considerando que estamos no Brasil, a insegurança jurídica vira regra e não exceção”, argumentou.
Os efeitos da decisão proferida, no entanto, não se restringem à CSLL e podem ser aplicados a outros tributos em que tenha havido mudança de entendimento por parte do Poder Judiciário. Logo, a Receita Federal poderá reaver bilhões de reais a partir das cobranças, reforçando o caixa da União em um momento de pressão por equilíbrio nas contas públicas.
Para a coordenadora fiscal da PLBrasil Accounting&Finance, Melissa Scarpelli Gaido, a medida é inconstitucional. “Está definido no artigo quinto da Constituição Federal: a lei não pode prejudicar direito adquirido, ato jurídico proferido e julgado”, destacou. Segundo ela, no caso do grupo Pão de Açúcar, o prejuízo financeiro vai à casa dos R$ 290 milhões.
A decisão foi bem recebida pelo governo, mas, de acordo com Scarpelli, ela pode ampliar o clima hostil no ambiente de negócios brasileiro, tornando-o ainda menos atraente para o investidor empreender no país. “Significa dizer que eu não tenho segurança jurídica nenhuma e aquilo que já foi reconhecido voltará à discussão. Alterar dessa maneira o sistema tributário vai mexer não só com a arrecadação, mas também com a capacidade de atrair investidores para o país”, afirmou.
Fonte: Correio Braziliense