
Por Rogério Aleixo Pereira
A aprovação, pela Câmara dos Deputados, do chamado PL Antifacções, representa uma das mudanças mais sensíveis dos últimos anos no tratamento penal das profissões técnicas. O texto, que agora vai tramitar no Senado, amplia os tipos penais, agrava penas, cria mecanismos de persecução criminal e, principalmente, declara que profissionais liberais e agentes econômicos podem ser responsabilizados quando suas atividades, mesmo que aparentemente regulares, facilitarem, conscientemente ou por negligência, a atuação de organizações criminosas.
Trata-se de um marco que atinge diretamente advogados, contadores, consultores, planejadores tributários, gestores financeiros, administradores e estruturadores societários, profissionais que atuam exatamente nos setores mais sensíveis usados por facções para lavar dinheiro, ocultar bens, dissimular atividades ou construir empresas laranjas.
Do ponto de vista material, o texto aprovado amplia a pena para crimes de colaboração com organizações criminosas, podendo alcançar 6 a 12 anos de reclusão, com agravantes quando houver emprego de estrutura empresarial, blindagem patrimonial, falsidade documental ou uso de profissionais técnicos para viabilizar as operações. O projeto de lei também prevê aumento de pena quando houver participação de pessoa “com capacidade técnica que potencialize a ação do grupo criminoso”, o que atinge diretamente contadores, advogados e consultores empresariais.
Mas tão graves quanto o aumento da pena são os mecanismos processuais criados ou reforçados pelo Código de Processo Penal. O PL facilita, por exemplo, a decretação de busca e apreensão em escritórios quando houver indícios de que o profissional atuou como instrumento de dissimulação ou ocultação. Em outras palavras, situações que antes eram consideradas residualíssimas — como diligências em escritórios jurídicos ou contábeis — passam a ocorrer com mais frequência quando o profissional é visto como parte do problema, e não como agente de defesa técnica.
Além das buscas, o projeto autoriza e estimula:
• A quebra de sigilo bancário, fiscal e telemático do profissional que tiver participado, ainda que indiretamente, de estrutura relacionada à organização criminosa;
• O sequestro, arresto e bloqueio de bens, inclusive honorários recebidos, quando houver suspeita de produto de crime ou de participação facilitadora;
• A prisão preventiva quando a atividade profissional tiver servido para ocultar bens, falsear balanços, criar empresas laranjas ou produzir documentos com aparência de licitude; e
• A realização de interceptações de comunicações, inclusive com clientes, quando houver suspeita de uso da atividade profissional como instrumento de crime.
Essas medidas, antes excepcionais, tornam-se, segundo o texto aprovado, instrumentos usuais de investigação, especialmente quando o profissional não conseguir demonstrar que cumpriu protocolos mínimos de diligência, de análise de risco e de verificação de origem dos recursos.
Como quem circula tanto no mundo jurídico como na contabilidade, vejo com clareza que o risco não está apenas nas condutas típicas, mas sim na capacidade de provar que os profissionais não foram negligentes. Um planejamento tributário mal documentado, a abertura de uma holding sem verificar a origem dos bens, um balanço contábil assinado com movimentações incompatíveis com a atividade declarada, ou a constituição de empresa para um cliente cuja capacidade econômica não foi minimamente comprovada — tudo isso pode ser interpretado como facilitação da ação de uma facção.
Esta criminalização indireta por negligência passa a ser o ponto mais crítico. A partir do PL, não basta dizer que o profissional não sabia: é necessário demonstrar que ele não tinha como saber, pois adotou controles próprios para evitar o apoio legal ou estrutural de pessoas ou empresas ligadas a facções. Nos debates legislativos, segundo consta, ficou claro que o Estado pretende “responsabilizar quem se omite” quando deveria ter verificado.
Nesse novo cenário regulatório, advogados, contadores e consultores financeiros precisam adotar, de forma imediata, um conjunto estruturado de instrumentos jurídicos e de governança interna capazes de demonstrar diligência efetiva perante as autoridades investigativas. Isso inclui a implementação de políticas formais de KYC – ou “conheça seu cliente” -, revisar seus contratos de prestação de serviços para inserir cláusulas específicas sobre a licitude das atividades e a origem dos recursos e até termos de recusa de serviços em operações sensíveis.
Para operações complexas, como estruturações societárias, planejamentos sucessórios, entre outros trabalhos, sugerimos, também, a assinatura de termos de esclarecimento de finalidade econômica, protocolos de auditoria reversa e até a adoção de medidas de prevenção à lavagem de capitais, considerando a legislação vigente e com estrita observância às normas do COAF.
A integração desses mecanismos permitirá ao profissional comprovar que não atuou com negligência ou facilitação, protegendo-se contra medidas de persecução previstas no PL — como buscas e apreensões, quebras de sigilo, bloqueio de bens e responsabilização criminal por colaboração indireta. Em última análise, esses instrumentos deixam de ser diferenciais de conformidade e se tornam elementos indispensáveis de autoproteção penal, civil e reputacional.
Se já se sabe que o cliente, ali sentado em frente à autoridade policial ou judiciária, normalmente atribui a advogados, contadores e consultores a orientação de sua conduta criminosa societária, tributária ou de planejamento, o que dirá agora, que as penas são tão duras quanto as de um homicídio?
Em resumo, a aceitação de um cliente por contadores, advogados e profissionais de finanças deve passar por procedimentos formais de verificação: consulta a bases públicas, análise da capacidade econômica, confirmação da origem dos recursos, cruzamento de informações e registros escritos que demonstrem diligência prévia à assinatura do contrato.
O PL Antifacções altera, em última análise, não apenas a legislação penal, mas também o padrão de cuidado que se exige das profissões técnicas. O profissional que insistir em atuar como fazia antes — sem diligência, sem registros, sem controle de risco e sem documentação de segurança — colocará seu CPF, seu patrimônio, seu escritório, seu sigilo e até sua liberdade à disposição de interpretações severas do Ministério Público.
Estamos diante de uma mudança estrutural. E aqueles que não se adaptarem à nova realidade enfrentarão não apenas riscos reputacionais, mas também investigações invasivas, medidas cautelares restritivas e, no limite, responsabilização criminal.
*Rogério Aleixo Pereira é advogado e contabilista. Sócio do escritório Aleixo Pereira Advogados.